Ressonâncias
A chuva veio, enfim, mas mansa. Garoa fina no vidro da janela. Miguel estava sentado no chão do quarto, encostado na cama, o notebook ao lado, ainda ligado mas em modo de descanso. Tocava baixinho uma playlist de músicas instrumentais que ele costumava usar para trabalhar — mas há quase meia hora ele não digitava nada.
Na tela do celular, a última mensagem:
Bia: "Foi especial te reencontrar hoje. Até breve, Miguel 🌿"
Ele sorriu com a delicadeza do emoji. Havia algo em Bia que mexia com ele de um jeito novo e antigo ao mesmo tempo, como uma lembrança não vivida. Algo pulsava dentro dele, e não era só atração — era vontade de conhecer mais, de não deixar passar.
Mas isso não podia crescer escondido.
Respirou fundo e se levantou e foi ver Karla. Ela estava no Consultório improvisado de sua casa, arrumando alguns cristais em uma prateleira. O cheiro de incenso de mirra pairava no ar. Ela vestia uma camiseta larga com a estampa de Shiva e tinha um lápis fincado entre os cabelos presos num coque.
— Posso? — Miguel perguntou, parando na porta.
— Sempre. Vem cá, trevoso. Tô precisando de companhia e elogios sinceros. — sorriu, mas percebeu que havia algo diferente no olhar dele — Aconteceu algo?
Miguel sentou ao lado da mesa, sobre a almofada de cor vinho que ela usava quando meditava.
— Aconteceu sim... mas não é ruim. Só... intenso.
Ela largou os cristais e cruzou os braços, atenta. Ele começou devagar.
— Hoje, depois da reunião, eu encontrei alguém no centro. Alguém que conheci a algum tempo. A gente se esbarrou no ônibus, trocou poucas palavras, depois perdemos contato. Era a Bia.
Karla arqueou uma sobrancelha.
— A Bia...?
— Uma moça que estudava moda. A conversa dela ficou marcada em mim. E hoje... a gente se reencontrou. Ela me convidou pra uma exposição. Eu fui. Conversamos muito. Nos conectamos de novo.
Karla ficou em silêncio por um instante. O silêncio dela não era vazio — era escuta. Miguel respeitou.
— Você ficou com ela? — perguntou, sem julgamento.
— Não. Quis, confesso. Mas não. Me tocou a troca. Me tocou a ela. E eu não queria que fosse um segredo entre nós. Eu precisava te dizer... e conversar sobre isso com você.
Karla o olhou. Seus olhos azuis pareciam mergulhar dentro dele. Depois de um instante, ela falou:
— Você não me traiu, Miguel. Mas entendo o que você sente. O que me diz não é só sobre ela. É sobre você. Sobre estar aberto... pra sentir por mais de uma pessoa, né?
Ele assentiu.
— Eu nunca explorei isso de verdade. Mas agora... eu senti algo que não diminuiu o que eu tenho contigo. Só... expandiu. E eu queria saber o que você sente sobre isso. Se... há espaço pra falar disso entre a gente.
Karla se levantou e caminhou devagar até Miguel. Sentou-se no chão, de frente pra ele. Pegou em suas mãos.
— Miguel, eu já pensei muito sobre amor, ciúmes, liberdade... — ela respirou fundo, o olhar firme — E mesmo com todos os meus monstros, eu não quero te prender. Você é uma das coisas mais lindas que aconteceram na minha vida. E se há afeto de verdade em outro lugar, eu não quero que isso vire culpa ou prisão. Quero conversar, entender, crescer junto.
Ela fez uma pausa breve, antes de continuar.
— E... tem algo que nunca tive coragem de dizer, mas acho que chegou a hora. Eu também já senti vontade de me permitir amar mais de uma pessoa. Já pensei em expandir minha afeição. Não só pensei, desejei. Mas sempre tive medo de falar disso contigo... medo de que soasse como se eu quisesse te perder. Ou como se isso fosse errado.
Miguel piscou devagar. A tensão que habitava seu peito parecia evaporar em silêncio. Ele apertou de leve os dedos dela.
— Fico... grato por você dizer isso. Me sinto reconfortado por não estar sozinho nesse sentir. Saber que isso também vive em você muda tudo. Sério.
A moça sorriu. Seu rosto era um alívio que falava de possibilidades reais.
— Você estaria aberto a isso também, Miguel? A me ver... livre nesse mesmo sentido?
— Sim, Karla — ele disse, com sinceridade plena. — Se for com respeito, com cuidado, se ainda pudermos conversar e partilhar tudo o que sentimos... então sim. Eu quero isso também pra você. Pro que somos.
Ele hesitou um segundo e perguntou, com carinho:
— Tem alguém que você esteja próxima agora?
Ela balançou a cabeça suavemente.
— Não... Mas gostaria de ter essa possibilidade. Queria viver isso com calma, sem culpa, com verdade.
Miguel assentiu.
— Então vamos cuidar disso juntos.
Karla se aproximou e pousou a testa na dele. Ali, no chão, em meio ao cheiro de tinta e mirra, eles selaram o início de uma nova fase — não com promessas absolutas, mas com o que tinham de mais precioso: a escolha mútua de não se esconder.
Naldo Costa
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